Black Media Skate

Linhas de Fuga

O skate é infinito. Pode ser só uma ferramenta num campeonato, ou instrumento de libertação da alma. Consegue pegar algo minúsculo, como um meio-fio ou uma faixa de pedestres, e elevá-lo ao status de personagem principal. Foi o que fez aqui Marcelo Garcia, em um projeto pessoal, cercado de amigos. Assista abaixo e depois leia o texto de Fábio Luiz Pimentel. Também fiz uma entrevista com o Dodô, sobre esse projeto, que você pode ler aqui.

LINHAS DE FUGA

LINHAS DE FUGA: O CONTO DA FAIXA DE PEDESTRES
por Fábio Luiz Pimentel

Em meados de fevereiro de 2020, o mundo foi acometido pela incidência da pandemia da COVID19, que desencadeou uma crise sanitária & política, estrutural, com implicações, profundas, sobre o conjunto da sociedade global. O saldo de mortes é estarrecedor. De maneira que, diante de tal desamparo, nos vimos em sérias dificuldades de dar continuidade às nossas vidas cotidianas, porque a vida mesma não contava mais com o mínimo de “segurança”, sem nos desestabilizarmos, material & emocionalmente. Ainda estamos envoltos com suas variantes & os efeitos deste acontecimento histórico que, apesar de parecer recrudescer, especialmente, com a vacinação racionalizadamente morosa como no caso do Brasil, & que escancarou a necropolítica em que se baseia o governo Bolsonaro, o que quer dizer: o modo como o Estado, por meio de suas políticas, decide, a cada minuto, quem vive e quem morre.

A pandemia desencadeou a limitação da circulação do público, especialmente, nas cidades, causando uma série de contradições e constrangimentos sociais, como as controvérsias ao entorno do fechamento do comércio & de que a população entrasse em quarentena, o que não se verificou como condição de possibilidade para grande massa da classe trabalhadora.

Em Florianópolis, observamos um processo de mudança ideológica no discurso do Estado. As praças foram fechadas para uso. O transporte público impedido de circular. Entretanto, as ruas passaram a ser liberadas para a circulação de transeuntes. Essa normativa abriu uma fenda no sistema & liberou o imaginário de skatistas da Ilha, como Marcelo Garcia (Dodô) & o filmmaker Santiago (Santi) que, identificaram nas faixas de pedestres, localizadas na frente do Terminal de Integração da Lagoa da Conceição (TILAG), um lugar privilegiado de intervenção & experimentação.

Na antiga cidade de Pompéia, hoje um vasto sítio arqueológico localizado na região de Campânia, no sul da Itália, alguns blocos de pedras sobressalientes permitiam que os pedestres cruzassem as ruas sem precisar pisar na via propriamente dita. Eram construções dignas de nota visto que, na rua, era localizado o sistema de drenagem e saneamento rústico da cidade. As calçadas eram elevadas meio metro em relação ao leito carroçável, de modo que a travessia de pedestres se dava em nível elevado.

O estudo dos fenômenos sociais tem interesse na análise de comportamentos. Em Brasília, desde 1997, a grande maioria dos motoristas respeita a faixa de pedestre, essa mudança na prática cultural ocorreu devido à uma campanha local, que envolveu importantes agências sociais, cujos representantes se reuniam no Fórum Permanente pela Paz no Trânsito, organizado pela Universidade de Brasília (UnB).

A Psicologia, grosso modo, considera a cultura como uma forma de viver compartilhada por um grupo de pessoas, que inclui costumes, valores, suposições ou tradições que orientam o comportamento, tornando possível às pessoas viver em seu meio. Estudos urbanísticos apontam que o modo de transporte mais exercido na cidade de São Paulo é o transporte a pé, tratado de forma inadequada pelos administradores do planejamento da cidade, e que figura como a maneira mais utilizada pela população nas presentes situações de esgotamento dos sistemas que geram quedas nas taxas de mobilidade.

É uma visão estreita sobre a caminhada, & que permite que a cidade perca qualidade de vida & comprometa as condições ambientais, tornando arriscada a circulação da população na Era da Agenda 21 & do Protocolo de Kyoto. Determinados estudos de caso demonstram exemplos encontrados em São Paulo, nas áreas mais centrais como nas periferias, & que comprovam não haver consciência do poder público & da sociedade como um todo, sobre quão importante é a garantia de infraestrutura urbana onde ocorre a caminhada. O que sugere que urbanistas & o poder público precisam compreender & desenvolver, também, políticas públicas para a prática do skateboard.

A passagem de pedestres pelas faixas implica num consentimento & numa adaptação às normas estabelecidas de trânsito, que indicam o sentido a ser seguido, da segurança da passagem que conecta os dois lados da rua. Mas, o skateboard, em sua essência, não respeita padrões vindos de fora, a não ser aqueles estabelecidos por nós mesmxs. Obedecer as “leis” não faz parte da cultura underground!

Dodô canalizou estes sentimentos numa formulação conceitual: “Se o nosso interesse for a travessia e não a chegada, as possibilidades aumentam ao sairmos dos padrões – normas. Assim como na faixa de pedestres podemos andar na linha, mas procurar por outros sentidos no caminhar”.

Segundo ato.

Os desdobramentos do filme, inicialmente proposto por Dodô & Santi, culminaram no encontro com o trabalho artístico, gráfico poético, de Alexandre Calcina, o Storyteller. Alexandre publicou uma peça onde se pode ler: “Manualzinho na faixa de pedestre. Quem é, sabe”. Um trabalho iniciado na ilha, rompe sua dimensão insular & se vê, intimamente, conectado, com expressões construídas na cidade de São Paulo. O que se manifestou como um insight na cabeça do Dodô, que sem demora convidou Alexandre Calcina para conceber a direção de arte de sua pesquisa com o Santi.

A sincronicidade é um dos conceitos mais complexos e importantes da psicologia analítica, formulado pelo clássico Carl Gustav Jung como uma alternativa ao paradigma da causalidade, & conta com a contribuição de autores contemporâneos que levaram o conceito adiante, estabelecendo diálogos possíveis com outras áreas do conhecimento, como no caso do experimento que este Coletivo de bricoleurs procura circunscrever & os novos caminhos possíveis & abertos para a prática do skateboard que visamos apontar, a partir da reinterpretação da nossa abordagem dos espaços constituídos pelas faixas de pedestres & da resistência que as filmagens de pequena, curta ou longa metragem, que mobilizam as idolatradas câmeras VX 1000, representam diante do “império” das redes sociais.

Além das contribuições sobre a “noção de tempo” no interior da sincronicidade, alicerçadas em bases filosóficas da hipótese junguiana, que ampliam a discussão, há conclusões de que a sincronicidade está além de uma provável coincidência, porque parece se tratar da representação de um importante fator dinâmico na propriedade de emergência & de auto-organização da psique.

O objeto cênico é um elemento constitutivo da Dança contemporânea, tal qual podemos observar em Café Müller, da coreógrafa Pina Bausch, onde mesas & cadeiras vão além da pragmática de seu uso funcional & extravasam a intenção do espetáculo. Na Dança, o objeto cênico tanto serve à representação dramática, na composição do sentido intencional do coreógrafo & diretor, quanto à condução da coreografia. Se, para recorrermos ao conceito da urbanista Jane Jacobs, o balé da boa calçada, skatistas encontram nelas, as calçadas, o que poderíamos traduzir como objetos cênicos. Neste filme, os objetos cênicos são as faixas de pedestres. O que distingue a prática inicial de escaladorxs, que encontraram nas cordas bambas um meio de buscar mais equilíbrio na caminhada pelas montanhas, é que no recurso às faixas, que são fixas, quem bambeia em busca de equilíbrio somos nós. O verdadeiro fenômeno dos manuais nas faixas de pedestres, que só quem é, sabe, se apresenta para nós como uma manifestação do “inconsciente coletivo do skateboard” onde quer que ele se encontre no mundo. Tal qual pintorxs, há uma espécie de sedução pela forma & a textura destas faixas.

A noção de arquétipo e seu correlato, o conceito de inconsciente coletivo, fazem parte das teorias mais conhecidas de Jung. Suas origens podem ser remontadas às suas publicações mais antigas, como a dissertação médica “Sobre a psicologia e psicopatologia dos fenômenos chamados ocultos” (1902), em que o autor descreve as fantasias de um jovem médium histérico & procura analisar suas possíveis causas subjetivas. Indicações destes conceitos encontram-se em vários de seus escritos posteriores que aos poucos cristalizam-se, a título experimental, as primeiras definições que são formuladas de modo sempre novo, até surgir um corpo teórico mais estável, no sentido de uma concepção.

Para Jung, uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este, porém, repousa sobre uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que chamamos inconsciente coletivo. Jung optou pelo termo “coletivo” pelo fato de o inconsciente não ser de natureza individual, mas universal. Isto é, contrariamente à psique pessoal, ele possui conteúdos & modos de comportamento, os quais são os mesmos em toda parte & em todos os indivíduos. Em outras palavras, são idênticos em todos os seres humanos, constituindo, portanto, um substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo.

A pandemia da COVID – 19, aprofundou os impactos sobre a vida psíquica da população global. A pertinência da manutenção da saúde mental tem sido amplamente discutida por psicólogxs responsáveis, comprometidxs com a Saúde Coletiva. Ao longo de 2021, o Trocando Manobras veiculou um texto que dizia: “Skate é tipo terapia. Dito por skatistas que precisam de terapia”. Trata-se de uma provocação, extremamente, pertinente, assim como o trabalho fundamental de skatistas que constroem a Psicologia Radical. O skateboard não é um mundo fechado sobre si mesmo, ele se conecta com a sociedade englobante. Entretanto, sabemos que a circulação de skatistas pelas ruas constituem uma parte profundamente significativa & afetiva da nossa sobrevivência psíquica & existencial.

A linha de fuga é esta linha que arrasta toda a subjetividade para um campo novo & a transfigura no processo, uma linha de subjetivação que faz os constrangimentos sociais da pandemia se afastarem, porque leva o conjunto para um lugar novo. &, quando descobrimos algo novo, toda uma subjetividade passa a ser de outra forma. A linha de fuga é uma trilha nova na subjetividade. Para que direção vamos? O que pode acontecer, que não um sentido único? Precisamos escapar de uma subjetividade cerrada, imposta pela ideologia dominante, para capitanear as múltiplas coordenadas que configuram a Rosa dos Ventos da navegação de nossas vidas.

Trata-se do conto das faixas de pedestres. Que reivindica que, qual Huxley: nos deparemos com o exercício da expansão das portas de nossa percepção!

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