Fernando Gomes é um fotógrafo, jornalista, artista visual e skatista baiano de 36 anos, nascido e criado em Salvador, no bairro de São Caetano. Ele é o responsável por um dos projetos mais legais nascidos lá, o .SSALITRE., que nasceu como vídeo e agora virou um livro de fotos, por enquanto digital. Com tanto coisa boa saindo do skate soteropolitano, chamei ele pra trocar uma ideia sobre o livro, que você pode ver na íntegra e até baixar aqui. Lê aí que a cena do skate tá fervendo por lá.
Começando do começo: eu sei que o .ssalitre. é um projeto que começou em 2018, com o vídeo de skate, mas me fala de onde veio a ideia. Era uma necessidade criativa sua? E o que é o .ssalitre.? É um projeto audiovisual ou abrange mais coisas? E como se pronuncia? É “salitre” mesmo ou “ésse ésse a litre”? Hahaha!
Sim, o projeto começou em 2018, com o vídeo. Acho que era, sim, uma necessidade criativa minha. Eu colaborava com as revistas e coincidiu com o momento das revistas impressas acabando. Ao mesmo tempo, era uma necessidade da cena, porque não tinha ninguém fazendo vídeo naquele momento, e a gente precisava mostrar o skate da cidade. Foi tanto uma necessidade criativa minha, de expressar em vídeo e mostrar o que eu estava vendo ali na cena de Salvador, quanto uma necessidade dessa cena. A ideia era fazer o vídeo, mas depois foi expandindo e veio a vontade de fazer um Lado B do vídeo, e de trabalhar as fotos, textos. Então dá pra chamar de um projeto multimídia, e a ideia é essa mesmo: trabalhar com vídeo, foto, texto, com o que tiver rolando no momento. Tem sido um projeto que tá indo de acordo com o que tenho trabalhado no momento: às vezes, eu estou mais no vídeo; às vezes, na foto, no texto. E o projeto acompanha isso. E agora virou um livro de fotografia. E se pronuncia “salitre” mesmo. Alguns pronunciam “ésse ésse a litre”. Hahaha! Na real, pronuncia como quiser, mas a minha leitura é “salitre” mesmo.
Agora falando do livro: ao fazer as fotos do livro, você foi atrás de algo específico, caçou um tema de propósito, ou só registrou os lugares que você já frequenta no dia-a-dia?
Acho que é mais uma parada do tema já ser o meu cotidiano mesmo, nas sessões de skate. Grande parte das fotos do livro foi feita antes da ideia do livro existir. Uma boa parte delas foi feita nas sessões dos vídeos do .ssalitre., algumas até antes do .ssalitre. existir. E teve uma parte que foi depois que a gente começou a editar o livro. No processo com a editora, foram surgindo algumas coisas, trazendo principalmente essa coisa da vivência do skate, além da performance, das manobras. Foi uma coisa que surgiu durante a edição do livro — já existia desde sempre, no vídeo tem muito isso — mas no processo de edição a gente buscou ter mais disso. Na real, o tema é muito do meu cotidiano, a vivência do skate de Salvador. Na maioria, são os lugares que a gente já cola mesmo. Mas teve lugares que eu pensei: “Pô, quero que esse lugar esteja no livro”. Porque tem uns picos novos em Salvador, na cidade baixa, na região do comércio, que a gente foi buscar pro livro mesmo. Picos novos que eu senti que era importante estarem no livro. Foram umas duas ou três sessões, já pensando no livro.
“Quem anda de skate na rua em Salvador sabe que a cidade tem todos esses contrastes”
A maioria das vezes que vemos Salvador na grande mídia, é exaltando a beleza, os pontos históricos, o litoral, enfim… Salvador não é só isso; tem muita pobreza, muito cinza, rua, viaduto… Nesse livro eu realmente senti o olhar de quem mora, conhece a cidade, lugares da cidade que não se vê nas novelas. Era uma intenção sua realmente fazer as pessoas verem isso, ou isso foi só uma consequência de se mostrar o skate na cidade, os skatistas soteropolitanos?
É uma intenção e também uma consequência. Quando começou o .ssalitre… Até o nome já traz um pouco isso, essa coisa da realidade corroída da cidade, de não ser só a cidade que está na publicidade, cheia de maravilhas, belezas naturais e lugares incríveis. A cidade também é isso, mas Salvador é também uma cidade de muito contraste, cheia de moradores de rua, com um transporte público horrível, com uma guerra de facção que tá matando um monte de gente nos guetos. Então acho que é uma intenção mas, inevitavelmente, é uma consequência de ser um projeto sobre a vivência de rua na cidade, sobre o skatista de rua. Quem anda de skate na rua em Salvador sabe que a cidade tem todos esses contrastes, com cenas maravilhosas, imagens incríveis, lindas, do mar… A presença do mar na cidade é muito forte, no .ssalitre. também. É uma coisa inegável, a gente vive muito próximo do mar, tem uma relação especial com ele, mas a gente também tá no asfalto, remando no asfalto. Então a gente também sente a parte mais áspera, mais crua da cidade, que não é a parte que tá na publicidade, né? Eu entendo que o .ssalitre., além de ser sobre o skate de Salvador, é muito sobre Salvador, sobre a rua de Salvador.
Perfeito, e foi exatamente isso que o livro me passou. Você acha que o skate da Bahia, ou de Salvador mesmo, se quiser ser mais específico, tá sendo mais visto no Brasil todo, nos últimos tempos? Tá conseguindo uma projeção maior?
Acho que sim. Eu diria que o skate de Salvador e da região metropolitana tem sido mais visto, alcançado mais visibilidade pra além da Bahia, pro mercado nacional, pra cena nacional. Eu atribuo isso aos anos e anos de muito trampo, muito corre nosso, skatistas da região. Porque são anos da gente fazendo o corre, tentando fazer a cena acontecer, tentando ser visto, tentando alcançar outros lugares. Muitos skatistas colando pra São Paulo também… E eu acho que várias ações também vem acontecendo ao longo dos anos. Dos vídeos da Dendê Crew ao que Felipe Oliveira tá fazendo no skate brasileiro, que é algo absurdo. E vários outros skatistas que tem metido as caras indo pra São Paulo também: Jeferson Santos, Felipe Brandão, Dandara Novato, Allana Almeida, Iure Almeida… Uma galera que tem metido as caras, com bastante dificuldade ainda, mas tentando fazer e ser visto em São Paulo pra poder alcançar outra visibilidade. Ainda é uma coisa muito discrepante, a estrutura de Salvador e da maioria das cidades do Brasil, pra estrutura do skate em São Paulo. Mas eu acho que já é, sim, um outro momento pro skate da cidade, em questão de alcance. Tem também a questão de ter aparecido muito pico na cidade, né? E aí com esses trampos da gente, de fazer foto, vídeo, editar, tentando botar o skate da cidade na cena, eu acho que a cena passou a perceber que Salvador também é um lugar skatável, não é só uma cidade pra colar de férias. É uma cidade pra colar pra render, porque tem muito pico bom, muito pico diferente, que ainda não foi explorado. Mais equipes de marcas tem circulado pela cidade, tem gente colando pra filmar com uma certa frequência… Isso faz com que a cidade acabe aparecendo mais no skate nacional. Acho que sim, estamos em um outro momento mesmo.
“Eu acredito muito no skate como um instrumento, uma ferramenta pra ajudar a gente a ir além nessa questão de se libertar das prisões, dos padrões que o modo de vida atual nos impõe”
Concordo com tudo. Eu queria falar sobre o texto no final do livro. Você acha que o skate é uma ferramenta efetiva de libertação, seja do que for? Da colonização, da falta de visibilidade, enfim…
Sim, pai. Eu acredito muito no skate como um instrumento, uma ferramenta pra ajudar a gente a ir além nessa questão de se libertar das prisões, dos padrões que o modo de vida atual nos impõe. É complicado, porque o skate também pode ser uma coisa que vai te deixar preso, bitolado e sem enxergar nada além dele. Mas eu prefiro viver e entender o skate como algo pra ajudar na minha busca por libertação mesmo. Entendo que o skate é um espaço que acolhe muito as pessoas que estão fora dessa curva de viver conformado com o modo de vida que é imposto pra gente, e eu acho que ele tem uma grande potência de ser o espaço onde essas pessoas se encontram, compartilham ideias e talvez se ajudem, se juntem nessas buscas por libertação. Inclusive, acho que até se libertar dos próprios padrões da indústria do skate mesmo. Acho que a gente tá num momento de pensar o skate além do que a indústria do skate coloca pra gente, de repensar os padrões que a gente seguiu por décadas e que, talvez, não façam mais tanto sentido. A gente tá num momento em que as pessoas estão tentando se libertar um pouco mais desses padrões, e eu acho que o skate só tem a ganhar repensando tudo e se libertando disso, buscando ser cada vez mais um espaço onde as pessoas possam ser elas mesmas, do jeito que elas quiserem e se sentirem mais livres. Mesmo que a gente não alcance isso como sociedade, pelo menos na sessão de skate, no ambiente de skate, que a gente possa se sentir mais livre mesmo. Eu entendo o skate por aí.
Ainda sobre isso, você acha que a agressividade do skate é um bom caminho pra essa libertação? O barulho, marca na parede, esse incômodo que o skate gera no cidadão comum de qualquer cidade, são necessários pra se fazer ouvir?
Acho que pode ser um bom caminho se for bem direcionada essa agressividade, esse incômodo, esse barulho. Eu até vejo uma certa relação com a pichação, com aquelas performances artísticas doidas na rua, sabe? Esse lado do skate de poder gerar questionamentos sobre o jeito que a gente vive na cidade. Desde o clássico “reinterpretar o mobiliário urbano” até dar um wallride na parede de um banco, que eu vejo como uma ação direta mesmo. Eu penso que, se é bem direcionado, isso tem uma potência grande. Lógico, não tão eficaz porque, ainda assim, é uma coisa lúdica, uma coisa muito pessoal de cada skatista, de como cada um entende o skate na cidade, mas eu penso que sim, de forma lúdica tem um potencial de questionar o jeito que a gente vive na cidade. Agora, por outro lado, a postura agressiva de alguns skatistas, essa cultura de ser agressivo com as pessoas ou entre si na sessão, pra mim não tem nenhuma relação com isso. Não vejo mais sentido nenhum nisso, na verdade.
Pra terminar, queria falar que aquele último texto do livro, descrevendo algumas cenas, já dá um roteiro de um curta ou de um filme, hein? Fica essa dica aí pra você.
Porra, dica boa, hein, pai? Em algum momento vai rolar algum vídeo nessa linha mais poética, dialogando com os textos ali, com o manifesto… Em algum momento vai rolar. Pra agora, o foco é fazer o livro impresso. Foi massa fazer digital, poder circular pra todo mundo, e agora a gente quer fazer impresso pra ficar aí, esse registro no papel, do jeito que merece. Um papel massa, tudo certinho.
Como dito lá no começo, você pode ver o livro no site da Editora Gris, e pode até baixar a versão em PDF pra ver com a qualidade no máximo. Pros preguiçosos, tem uma versão do livro em vídeo. Mas baixa o PDF que é a melhor coisa que você faz.