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A Continuação de Daniel Marques

Depois de um longo tempo sem lançar uma vídeo parte, Daniel Marques soltou no mundo, aqui pela Black Media, a Continuação. Por isso, troquei uma ideia com ele sobre todo esse processo, e você confere abaixo:

Qual foi sua última vídeo parte antes dessa? E essa surgiu de onde?
A que eu considero como parte mesmo, a última que saiu, é a do Crailers, vídeo da Crail que saiu em 2019. Teve também uma partezinha que foi pro campeonato de vídeo da Matriz, online. Mas a que eu considero um trampo, assim de parte mesmo, foi o Crailers. E essa agora que tá saindo, Continuação, começou a ser feita meio que ao mesmo tempo do Crailers. Mas o Continuação surgiu de um projeto do Alexandre Veloso, o Storyteller, que era só de VX1000. Ele pegou a câmera, quis fazer uns testes e tal, começou a filmar e me chamou. A gente foi pra sessão, tudo bem despretensioso, filmou umas paradas, mais pra ele testar a VX e tal… Só que a gente estava sempre juntos, sempre se falando. Eu estava indo muito pra rua nessa época e a gente foi saindo, filmando algumas coisas mais específicas para o canal dele, algumas ideias mais temáticas que até chegaram a sair. E essas coisas mais soltas da rua, fomos guardando. Até que ele me chamou para fazer uma parte mesmo. Começou daí, foi por volta de 2016. 

A primeira sessão.

E o nome Continuação vem de onde?
Cara, acho que primeiramente surgiu porque ele estava começando a filmar uma parada com o Gui Silva.  E na minha brisa, claro que era só uma hipótese mas eu pensei que a parte do Gui podia vir depois da minha, tá ligado? E o Gui é um moleque mais novo, que eu considero uma continuação, evolução da espécie. Mas claro que não era para ser o nome do vídeo, né? Porque era outro projeto… Mas como já tinha uma fala ali na última manobra, associei com isso. E também acho que faz parte do processo da minha vida, uma continuação…Nesses últimos anos eu tive muitas questões sobre como é a minha continuação no skate, sabe? Tipo, se eu ainda vou continuar fazendo partes dessa forma, não sei se essa é a minha última que vai sair, se ainda vou fazer mais coisas desse tipo, sabe? Acho que tem questões bem pessoais sobre a minha carreira no skate. E questões de continuação também da nossa espécie, de como está a vida nesse planeta, de tudo que a gente está passando. Não que o vídeo traga isso, porque ele é mais manobra, mas acho que envolve isso no nome também. 

Quando você fala o nome do vídeo no próprio vídeo eu pensei: “Esse cara planeja tudo”. Mas então não foi bem assim.
É, não era para ser esse nome. Mas foi isso; a gente começou em 2016 e, por causa dos processos da vida, pausava em uns momentos… Era um vídeo independente, então foi da correria de cada um. Aí voltava, filmava mais intensamente durante uma semana seguida, depois ficava um tempo sem filmar. Então foi por isso esse longo tempo também. E sem prazo pra terminar, né? A gente pensava em tal mês e tal ano, não sei, só pra ter um horizonte. Mas aí chegamos a ficar sem filmar uns dois anos. Em 2019 eu tive uma lesão bem grave no pé, cirurgia e tudo. Aí quando voltei a andar, não tava batendo muito a agenda pra filmar pra rua. Aí veio a pandemia e a gente voltou a filmar em 2021. Então teve essa pausa de dois anos.

Switch frontside grind. (Diego Sarmento)

E de onde veio a ideia de colocar aquela narração em off, com aquele texto na parte do Vale, questionando o que vale e o que não vale?
Acho que começou com aquele wallie nose wheelie nollie flip que a roda encosta. E quando eu tô num processo de fazer uma parada, aquilo tá dentro de mim, na minha mente. Por exemplo, com a parte: eu tô saindo na rua, vendo os picos e já associando pra essa parada. Ou tendo ideias de manobra, sei lá. E as ideias de música e de outras coisas ficam ali, mesmo que eu não pare pra pensar nisso. Tá ali, sabe? No meu inconsciente. E aí eu não lembro se assisti a imagem que eu tinha gravado a tela com o celular, e a roda meio que encosta na hora de chutar o nollie flip. Eu lembro de ficar tentando acertar de novo, sem encostar, e encostou de novo. Aí fiquei pensando: “Caramba, será que dá para usar?”. E aí nisso me veio uma frase que agora não vou lembrar, mas eu anotei. Aí eu reparei que nenhuma manobra no Vale é comum. Todas eu tirava o pé, ou saía de no comply, tem os manuais raspando… E aí ficou anotado como uma ideia para usar na edição, tá ligado? E já tinha percebido que, de repente, dava para juntar as coisas do Vale ao invés de espalhar pelo vídeo.

Foto: Diego Sarmento

Achei legal porque quem tá assistindo vai querer comentar que pegou a roda, e aí no próprio vídeo você já começa a falar, dá até um susto. Você mesmo já começa a questionar.
Já começa a se explicar, né? Haha! Nas premières, na hora que entrava essa parte, o Murilo (Romão) falava assim: “Agora a gente vai entrar na sua mente”. Mas o louco é que isso aí, quando eu comecei a escrever sobre o que vale e o que não vale, não foi nem tanto pensando nas manobras em si. Tá envolvendo a manobra, lógico, mas foi pensando no geral, nas nossas crenças, costumes, hábitos , na cultura… O que a gente acha que vale, o que não vale, o que a gente faz, como a gente se comporta, as crenças… Acho que meio que questiona isso também. E tem a voz da Júnia, minha amiga, que já salva nas falas. Nas premières eu senti que a galera reagiu de uma forma da hora; não elogiando, mas entrando na brisa, tá ligado? Deu pra ver que não ficou só uma estranheza que incomoda e pronto. É da hora ver a interpretação das pessoas também.

E muita gente que fala que gosta da criatividade no skate, se você faz algo realmente diferente, já entorta a cara. Achei legal ter esse questionamento dentro da própria parte.
E eu sou muito assim comigo mesmo, tá ligado? Acho que não iria querer usar aquele nollie flip porque a roda encosta. Eu me cobro bastante nesse sentido. Não que seja perfeita a manobra, mas tem um jeito que eu imagino que era pra sair, e se não sai daquele jeito… Sabe? Então isso também é comigo mesmo. E veio quando eu comecei a anotar as ideias do Vale, já brincar com essa palavra. Vale, valer, né? E acabou ficando como uma homenagem também, porque todas essas imagens são no Vale original.

Você gosta de filmar ou é uma pressão que não te faz muito bem?
Mano, eu gosto muito. Acho que eu tenho um pouco de vício, assim. Não que eu precise estar sempre filmando, mas eu gosto. Gosto de estar na rua, me adaptando, experimentando, sabe? Mas ao mesmo tempo eu sei levar meio como uma brincadeira, mesmo levando muito a sério. Depois de muitos e muitos anos filmando, tem algumas coisas do processo que eu já tô meio enjoado, sabe? Mas eu gosto de estar na rua, de ver os picos, imaginar as manobras… Ah, e o legal desse vídeo, dessa parte, era que o Alê me chamava pra filmar e me transmitia o que ele imaginava, tá ligado? Que ele gostaria de uma parada bem livre mesmo, sem paradigmas. Muitas escolhas de pico e de manobra vieram disso, de eu estar muito à vontade, fazendo o que queria, e ele também propiciando isso. A gente teve uma sintonia muito da hora nesse sentido, essa liberdade, sabe? Muita coisa que tem nesse vídeo vem disso.  

E como tá o skate pra você hoje em dia? Anda diariamente? Sai pra andar só por andar ou sai mais em missão pra filmar?
Tenho andado pouco, menos do que eu gostaria, por questões de outros corres, de trampo… Mas eu procuro, quando vou andar, andar com qualidade, sabe? Uma horinha ou duas, sem parar, na vontade. A maioria dos rolês tem sido só pra andar mesmo. De vez em quando, se tem alguma oportunidade ou surge alguma ideia e tem alguém filmando de celular, filma. Mas eu saio pra andar de skate, mano. Eu gosto muito de andar de skate. Isso é o primordial da minha relação com skate, andar de skate. Mas tenho ido filmar também; tenho feito uma parada aí que é uma ideia mais em São Bernardo. Tem também um outro mini documentário em andamento. Já está quase tudo filmado, na verdade. Às vezes estou nos rolês com os Flanantes… Vai indo assim.

Alexandre Veloso e Daniel Marques.

Claramente, a criatividade é uma das bases do seu skate. Você faz algum tipo de esforço nesse sentido? Ou é totalmente natural, as coisas vem na sua cabeça na hora, sem precisar ficar olhando, imaginando… Como é?
Tem bastante ideia que surge a partir do pico, de estar no pico, ver uma imagem e enxergar as possibilidades. E tem manobras que vem a ideia e aí você pensa num pico pra dar ela. Tem esses dois. Mas vou te falar que não é uma coisa que eu forço, mano. Tenho bastante facilidade nesse sentido. Até tenho que bloquear, eu tenho muita ideia. Às vezes as ideias vem e não dá para fazer, não tem oportunidade, e isso gera ansiedade. Ou fica ali, martelando na mente. É isso com tudo que eu faço, até com som. Tem uns 50 sons que eu quero samplear. Vai ficando esse acúmulo. Tem um monte de anotações, um monte de aba salva nos favoritos, tem de todo jeito. 

E quando você realiza uma ideia, qual a sensação?
Ah, acho que é o ápice da coisa, né? O mais da hora é isso, o fazer. A satisfação de fazer, de ver que deu certo, funcionou. Às vezes você vai executar e tem que adaptar de alguma forma. Eu gosto disso, do fazer, da satisfação de estar fazendo e ver realizado. 

E você acha que todo o esforço pra fazer uma vídeo parte ainda vale a pena hoje em dia?
Essa é uma grande questão dos tempos de hoje, né? Se vale a pena. Porque mesmo processos assim mais longos saem e são esquecidos rapidamente. Muita informação, muita coisa. Pra mim, pessoalmente, vale a pena. Eu tô até curioso pra ver como vai ser o decorrer desse vídeo daqui um tempo, porque faz tempo que não sai uma parte minha. Quando saiu foi em coletivo, em vídeo de marca. Quero ver como vai ser esse processo. E ver também em qual sentido vale a pena, em qual não vale. Mas, pra mim, vale sim, porque eu gosto dessa construção, sabe? Eu acho que ela tem um valor. Como foi esse, sabe? É uma parte de manobras mas teve meio que um tema. Essa possibilidade de ter poesia junto, de ter fala, eu acho que vale, sim.

E a última trick da parte? Tem uma brincadeira ali, não tem?
A última manobra tem relação com a linha que fecha o BEATS, é uma linha espelhada. No BEATS eu pulo o banco de switch ollie de back, depois board. Nessa agora, ollie de back na base e depois switch board. Já faz uns anos que eu tô com mais manha de mandar switch no comply 360 do que na base, e aí pensei que talvez daria pra mandar o switch board saindo de switch no comply 270. Vi que dava pra tentar ali pelo lado de dentro do banco da Roosevelt; seria um pouco mais difícil mas ficaria legal pulando o banco no final. E achei que também daria pra fazer uma linha, e aí já foi ligando tudo: fazer a linha ao contrário da linha do BEATS, eu também nunca tinha visto ninguém dando essa… Então seria legal essa fechar a parte, fazer essa ligação. E a do BEATS foi em 2011, e essa agora filmei em 2021, dez anos depois. De certa forma, eu tava continuando, já tem isso da continuação envolvida. Mas foi uma missão essa; a gente foi umas cinco vezes até acertar. O Alê foi muito fechamento, paciente, deu mó força no processo. A hora que eu acertei, saiu até uma lágrima de emoção.

E os manuais raspando no Vale ali?
Essa ideia veio de uma vez que eu vi uma guia descendo, com o chão bem áspero. E sei lá de onde veio, mas eu pensei que seria da hora mandar um manual raspando, fazendo bastante barulho, causando mesmo. E pensei também em entrar de nollie heel, que é bem simbólico como manobra técnica. E aí acho que contei isso pro Klaus, conversando: “Nossa, imagina de nose wheelie, raspar deve ser difícil”. E aí ele deu a ideia de tentar no Vale, porque o Vale era liso. Eu fui e deu certo. Depois voltei pra fazer o switch nose wheelie, saindo de fakie flip. É muito louca a sensação do shape raspando no meio, é bem diferente, até o jeito de controlar. É muito legal. E ficou uma coisa simbólica ali no Vale, porque lá sempre foi um lugar de manobras muito técnicas, então acho que tem essa brincadeira também. Ah, e na época, 2018 mais ou menos, tinha aquele Wrecking Ball que fazia um quadro, acho que no YouTube, Manny Busters, que era o caçador de manual. Ele ficava mostrando os manuais que encostaram a roda na hora de encaixar o manual, ou na hora de sair, ou durante. E ele mostrava, ficava repetindo, era engraçado. E eu ia fazer meio que uma brincadeira com isso, até escrevi na lixa: “Oi, Wrecking Ball, tudo bem?”. Mas acabou não usando, porque o vídeo foi editado agora e nem tem mais o Wrecking Ball, acho. Mas tinha essa referência, essa brincadeira também.

Você e o Murilo fizeram umas 70 premières da sua parte junto com o Andarilhagens, vídeo dos Flanantes. Isso é uma coisa que você só tem quando lança um projeto assim, mais pensado, mais trabalhado. Ninguém vai no cinema com mais 200 pessoas pra ver um post do Insta. Deve ter sido muito foda rodar os lugares passando o vídeo, né? Essa proximidade com as pessoas.
É um ritual, né? Tem muito valor por isso também. Foi muito especial a gente ter conseguido fazer essas premières em lugares diferentes. Até dentro de São Paulo mesmo; quando você faz uma na Zona Oeste, uma no Centro, é outra galera que cola em cada lugar. Ou vai pra outra cidade, como fomos pra São Bernardo, Barretos, Guarulhos. É uma galera que não iria colar no Centro, mas foi nessas. E tem a coisa do presencial, né? Das pessoas estarem juntas assistindo, a vibração, o som alto, o telão… Um grita pra uma manobra, o outro já se empolga… É uma oportunidade das pessoas estarem juntas, terem essa troca.

Queria falar mais sobre a criatividade na edição da parte. Você acha que valeu o risco?
Valeu. Eu poderia pegar a parte do Vale e só colocar todas as manobras, até diminuiria essa parte, tá ligado? E isso funcionaria muito bem, até pensando comercialmente. Só que eu tinha essa ideia anotada e pensava: “Caramba, será que eu não faço essas falas? Só coloco o bagulho direto?”. Mas a outra voz fala mais alto: “Não, mano, arrisca”. Porque é um risco, e eu prefiro me arriscar. Eu sei que as manobras por si só já falam. Mas tem isso a mais, então eu prefiro arriscar. 

Nose puxando. (Luma Athayde)

Eu prefiro que você arrisque também. Tem muita coisa saindo, é difícil fazer algo marcante, e acho que o caminho pra isso é esse. “Aquela parte do Daniel que ele fala umas paradas no meio”. E viver sem arriscar essas coisas é muito chato. Mas é um risco, você tá “gastando” seu suor, suas imagens, numa ideia diferente.
E tá muito repetitiva a fórmula. Sei lá, tá um pouco chato até, não tá muito inspirador. Mas isso que eu faço vem muito de referências, né? Muito desse vídeo foi inspirado no próprio Storyteller, tem referência das paradas que ele faz e eu acho bem foda. Tem muita referência de coisas do Japão que eu gosto bastante, do Takahiro Morita, da banca da Tightbooth, que eu já acompanho há muitos anos. O Gou Miyagi, que é uma referência maior. O que ele tem feito hoje em dia… Ele tá indo contra o sistema total. Ele soltou uma parte agora que não tem acerto. Toda essa lógica da produtividade… Eu brisei nisso, tá ligado? Que ele vai totalmente ao contrário e leva o bagulho pro Japão tradicional, traz isso pro skate. Pra mim é a arte máxima do skate, sabe?

É muito fácil falar que a criatividade é tudo no skate, mas é muito difícil arriscar, botar a cara e fazer uma coisa totalmente diferente mesmo.
Eles também põem umas coisas de humor no meio. A Tightbooth agora tá ficando conhecida, mas até nas coisas antigas que você acha no YouTube, eles ficam zoando o próprio skatista do vídeo, sabe? Tem umas coisas meio do humor japonês, a linguagem, a estética. Mas acho que a criatividade também vem do conflito, de você se autoconhecer, sabe? Dessa busca. E de referências, referências fora do skate também…  É muito importante. Às vezes eu acabo vendo uma performance de alguma coisa na rua, uma peça de teatro, filme, circo…Tudo serve de referência pra desbloquear, sabe?

Alguma coisa pra terminar?
Queria agradecer você, Fel, e toda a equipe da Black Media por terem acolhido o vídeo. E pela forma que receberam também, por essa entrevista, pelo espaço.  Estou feliz por isso, por poder estar falando sobre. Agradecer demais o Alê, que filmou tudo; sem ele não existiria esse vídeo, essa parte só existe por causa dele. Agradecer o Naldinho, Naldo Pereira, que fortaleceu muito, me ajudou na edição. A Júnia Sena, que participou com as vozes, me deu uma força durante os processos também. E o Murilo e os Flanantes pelas premières. Foi muito da hora a experiência, todos os lugares por onde a gente passou, as pontes, as conexões que ele ajudou a fazer. E também a quem colou nas premières.

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